"Aqui ninguém é louco. Ou então, todos o são." (Guimaraes Rosa, Primeiras Estórias)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

AS BRUMAS

“Quando se olha para o espelho não se vê, não se enxerga, ficamos parados, mudos e imutáveis, vemo-nos como uma eterna mascara, e não importando sua roupagem, o resto, o que realmente somos, e não o que nossos olhos vêem, muda permanentemente” (Inspirado no conto “O Espelho” de Guimarães Rosa).


Era dia – e meio – entre nuvens cinza e o céu azul. Nesse agudo espaço entre praia e mar, as ondas chicoteavam a areia e emitiam seu peculiar estrondo.
Até mesmo os sirizinhos da praia ficavam meio entremeio. Sob a areia perigo de chuva, em suas casinhas subsolo, sem alimento. Iam e vinham, para fora, hora, para dentro em um momento. Uma dança mímica anunciando a chuva do outro dia.
A outra manhã era cinza. De nuvens uma só, imensa, carregada de água mar vinda lá do sul do mundo e estando aqui, nessa ilhota, despejou-se sem dó, sobre tudo que é praia e mar e sobre todos que são gente, floresta e animais. Não havia jeito, esse tempo sorrateiro nem ameaçava cessar. Era preciso sair desse “entre meio”, ou fica ou vai? Vamos! Decidimos logo. Andemos sobre esse mar e céu de chuva e cinza, nessa pouca luz de nublado.
Nessa caminhada há pedras no caminho. Intransponíveis? Nem tanto. Um pouco difíceis de escorregadias, de chuva, de vento no ar e água nas pedras. Vai de canto, passa no meio, escorrega, toma cuidado e olhe bem por onde pisa! Pula em uma, salta por outra até chegar a seu fim. É beira de praia, passagem uma para outra, estreita que só. Lá em cima, logo no altão, depois de tudo que é pedra, tem outra ainda maior: Imensa Cabeça de Tartaruga, vigia do caminho, porta de entrada da outra praia. Essa se abre, agora, diante de nossos olhos. Original.
Essa outra, muito bonita também, meio enseada, mais fechada, com escarpa bem juntinho da areia marcada por exuberante mata, seus riachinhos cortando toda floresta, beijando o mar. Ó tudo isso fazia refletir luz, mesmo nesse dia, em nossos olhares.
Lá em cima, correndo com o olho sobre a escarpa, no cimo da serra, depois do verde musgo de mata e pouca luz, ali estavam às graciosas brumas: Essência viva do mistério invisível e espírito revelador. Mostra-se toda em plenitude, escondendo algo indivisível e desdobrando o entre meio em tempo inteiro. Tudo isso visto, intuído, aqui de baixo, com olhos pequenos; belo mito a nos revelar.
As brumas mudam tudo em nossa concepção. O pensamento fica mais amplo, abraça o espaço-tempo, traga de uma vez esse tem não tem de toda hora. Ela agora é nossa companheira, em síntese somos: Céu cinza, mar bravo, praia estreita, escarpa florestada, cimo e bruma, tudo junto, interconectado. As brumas nos revelam as belas palavras que nos foram ditas em um tempo inalcançável e fazem-nos despertar sobre a plenitude, a totalidade do universo. Tudo isto também acontece em tempo lento, é pura observação do espírito.
Lá ao longe, damos até logo ao totem “cabeça de tartaruga”, nós já vamos e ele fica para trás. Antes de fim de praia, entre matas e escarpas, uma casa, ou ao menos vestígio dela. Vemos fumaça entre bosque, atividade de fogo cotidiano, intuímos residência, há alguém que mora lá! Por aqui é assim que se vive: barco de madeira no barranco-garagem-frente-mar, casa dentro de mato, da praia só se vê bruma de homem, só vestígio de gente na natureza. Essa essência de vida que já passou ao menos para boa parte da gente, lá resiste, altera-se é verdade, mas conserva-se assim, como dito.
Sem mais. Morro acima. Liso é o morro-sabão, é revelador também, ponte estreita e íngreme de uma a outra praia. Liso barro de chuva fina incessante. Lado de lá, o da descida, é só pedra, acerta o paço, ou melhor, o jeito de pisar e vai olhando atencioso para baixo e sempre em frente!
No fim é outra praia, agora brejo. Difícil penetrá-la. Muitos riachinhos a corta e a chuva só fazem inundar. Tudo isto visto no pé do morro sabão. Olhando, uma vez mais por ele, como breve despedida e ultimo suspiro de voltar a andar, de passagem de vista, outra grande pedra, lá no alto solitário, rosto de perfil de macaco. Mudou-se o dono de “tudo vê” desta praia.
Na agilidade da paciência, tem que se mover entre água, areia, poça e barranco. Atola o pé, pula o riozinho, desvia de lá, sobe no morrinho para algum caminho ver-mos. Hum! Lá no fim dessa praia tem um delicioso suco de manga, viva, gostosa. Foi congelada ainda espumante e fresca, quando era, então, verão. Tudo mudou por aqui, pelo menos em clima e gente, mas o suco, essa manga, parece a de outrora; divino refresco de fruta e chuva fina.
Em nossos corações ouvia-se o palpitar do cansaço da travessia. Devíamos voltar de barco para outro lado da ilha, mas embarcação não mais havia. O que faremos? Retorno imediato, agora, breve, antes de escurecer? Sim, vamos logo, o caminho é difícil e a chuva... Essa agora apertou!
Passo ligeiro, voltando para pousada, ainda na praia, olha lá, as brumas sobre a floresta até parecem pensamentos. Um momentinho que se passa e a brisa do mar a dissolve foi-se a ligeira névoa. Nesse escasso momento de pouco existir, nessa doce ilusão de vagarosamente pensar, forma-se devaneio em meu pensamento: As brumas vêm e vão, anunciam algo que não vemos, mas, que está, sempre, em plena formação, em constante atividade.
Olho do lado e vejo minha existência dissolver-se, revelar-me algo que ainda era nebuloso, me dirigindo para dentro, perdendo as mascaras, engolindo o reflexo. Não me vejo mais, não como “eu”, sou só dissolução, sou só palavra-alma, conteúdo sem limite, sem forma estabelecida. Nesse breve instante, aquele de intuição, de flash, esse devaneio me aparece, como que bruma, escorrego sobre esse mistério, desfazendo-me, diluindo-me e transformando-me novamente em alguma outra substancia, em simples fórmula de natureza.
Logo se volta ao corpo, essa condição insustentável de existir.

(David, 2010, após a “travessia” de algumas praias)

Nenhum comentário: